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Escritos, artigos e catarses

Por Ana Luiza Faria

Ilustração conceitual de Nachträglichkeit: o enigma temporal do inconsciente
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

Algo em nossa vida psíquica não obedece a uma linha temporal simples: o que acontece "antes" e o que acontece "depois" entrelaçam-se de maneira que o passado só se torna verdadeiro ou verdadeiro para o sujeito no instante em que o presente lhe concede significado. Essa é a experiência do enigma temporal do inconsciente: uma temporalidade dobrada, onde o efeito precede a aparente causa e a história psíquica se escreve em retrocesso. Não se trata apenas de memória cronológica, mas de uma operação que reatribui sentido ao passado a partir de um posterior que o transforma.


Freud colocou essa operação no centro da teoria quando introduziu o conceito alemão Nachträglichkeit, frequentemente traduzido como ação retroativa ou efeito tardio. Para ele, certos acontecimentos não deixam traço traumático quando ocorrem; só o adquirem quando uma vicissitude ulterior um desenvolvimento corporal, afetivo ou simbólico lhes concede a carga que faltava. Assim, aquilo que parecia inócuo no passado recebe, depois, a qualidade traumática que explicará sintomas, sonhos e repetições. O que muda não é o fato bruto, mas o modo como ele é aprisionado no aparelho psíquico através de uma leitura posterior que o converte em enigma, em força que insiste.


Essa retroação exige compreender alguns vetores da dinâmica freudiana: lembrança, repressão e repetição. A lembrança não é simples restituição; ela pode ser transformada em sintoma quando o sujeito, por operação inconsciente, lhe confere um valor novo. A repressão, por sua vez, não elimina o registro; ela desloca-o para outra lógica temporal o que foi recalcado pode permanecer latente até que um evento subsequente lhe faça adquirir urgência. A repetição compulsiva, então, aparece como um dispositivo pelo qual o passado reativado insiste no presente: não para narrar o que ocorreu, mas para encenar a interlocução entre o que foi vivido e aquilo que mais tarde o nomeou. Em termos freudianos, há uma inversão: o efeito subsequente constitui a causa psíquica do que se instalará como sintoma.


Freud vinculou essa operação também ao estatuto da sexualidade e do desenvolvimento: pulsões e transformações corporais introduzem significações que reescrevem lembranças infantis sob uma luz nova. O que antes era fragmento sensorial ou cena sem sentido torna-se, por efeito de uma nova etapa pulsional, gramática de um mal-estar. Isso cria uma temporalidade não linear uma história que se compõe por adições retroativas em vez de apenas por acumulações cronológicas. O inconsciente, por essa via, não é depósito inerte, mas agência temporária que reinterpreta e reordena.


Enfatizar Nachträglichkeit é perceber que a constituição do sujeito ocorre em camadas temporais que se respondem reciprocamente: o que nos funda como sujeito não é uma sequência unívoca de eventos, mas a lembrança do passado trabalhada posteriormente por significações que o atravessam. Assim, a subjetividade contém um atraso constitutivo: aquilo que nos forma muitas vezes só ganha forma depois através de revisitações que alteram o original. Quando algo se instala em nós como resistência, quando aquilo que insiste recusa a palavra e retorna em forma de sintoma, é a marca dessa retroação. O sujeito não é simplesmente aquilo que aconteceu com ele, mas aquilo que o passado veio a significar quando o presente o leu de outro modo.


Essa estrutura temporal tem consequências existenciais profundas. Primeiro, ela modifica o modo como o sujeito ocupa o tempo: passado e presente deixam de ser compartimentos estanques; o sujeito vive num presente que constantemente reescreve o passado, e num passado que impõe demandas no presente. Isso produz uma forma de existência ambivalente: há no sujeito um sentimento de continuidade e, ao mesmo tempo, de estranhamento como se partes de sua própria história só se tornassem vivas quando retornam sob outra luz. Em segundo lugar, a retroação coloca a experiência do eu em permanente trabalho de tradução. O que permanece sem palavra volta-se como insistência; o que foi dito tarde demais transforma-se em tremor silencioso nas relações consigo e com o mundo. Não é apenas memória que falha ou sobra: é uma economia temporal que regula o peso dos afetos, a posição do desejo e a capacidade de narrar-se.


Há também uma dimensão ética e política da existência presenciada por essa temporalidade. Quando a formação do sujeito opera por retroação, qualquer ideia de autoria plena sobre a própria vida se torna problemática. O sujeito descobre que o sentido de suas escolhas muitas vezes foi costurado por retornos e revisões que subvertem a espontaneidade esperada. Isso não anula a agência, mas a coloca sob a condição de uma historicidade sempre incompleta: somos, em parte, o produto de significações que apenas mais tarde nos alcançam e que nos obrigam a reconhecer uma história que não se exaure no seu relato inicial.


Finalmente, o enigma temporal do inconsciente nos confronta com um paradoxo humano: a necessidade de coerência narrativa e a impossibilidade de fechá-la definitivamente. Quando o passado se altera por uma leitura posterior, qualquer tentativa de fixar uma única versão de si esbarra em outras versões potenciais que aguardam seu turno de retroagir. Isso abre um campo de inquietação criativa: o sujeito pode encontrar, nas lacunas e nas reatribuições de sentido, o material para pensamento, arte e crítica mas também para sofrimento, repetição e enclausuramento.


Ao fim, resta a pergunta que não quer solução pronta, mas que nos convoca a atenção: como viver sabendo que parte do que somos só adquire realidade quando o futuro nos volta ao passado? Essa pergunta não pede conserto, pede escuta uma escuta que reconheça a temporalidade dobrada do nosso íntimo e aceite que o autoconhecimento, quando acontece, chega sempre com atraso e, por isso mesmo, com a capacidade de reabrir o que parecia fechado.


Nachträglichkeit: o enigma temporal do inconsciente

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista delicada sobre o tema “Por que autoconhecimento é um trabalho que nunca termina”, com mulher, flores e linhas douradas
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

Entender a si mesmo é uma das jornadas mais silenciosas e, ao mesmo tempo, mais intensas que alguém pode viver. Não há um ponto de chegada, nem um troféu que simbolize a conquista de quem já se conhece por completo. Esse processo é vivo, mutável e acompanha cada fase da existência, pois mudamos constantemente e o que somos hoje já não é o mesmo que fomos ontem.


A vida nos transforma de modo sutil e profundo. Cada novo encontro, cada perda, cada experiência, reorganiza as peças internas e nos convida a olhar novamente para dentro. O que antes parecia verdade absoluta pode, com o tempo, se mostrar apenas um recorte de um momento. Crescemos, mudamos de opinião, revisamos valores, aprendemos a lidar com o que antes não sabíamos nomear. Assim, o trabalho de compreender-se nunca se encerra, porque nós também não paramos de nascer e renascer em pequenas formas diferentes.


Há quem busque esse entendimento como se fosse um destino, um ponto fixo em que finalmente tudo faria sentido. Mas compreender-se não é chegar, é continuar. É um exercício de escuta permanente, em que o próprio silêncio fala. É olhar para o que sentimos sem o desejo de rotular, e sim de compreender. Esse movimento é o que nos torna mais inteiros mesmo quando descobrimos partes que ainda doem ou que preferíamos não ver.


O fascinante é perceber que dentro de cada pessoa convivem forças opostas. Há contradições, desejos que se misturam, medos que coexistem com a coragem. E é justamente essa mistura que nos dá profundidade. Conhecer-se não é eliminar as sombras, mas reconhecer que elas fazem parte da paisagem. A verdadeira lucidez vem quando aceitamos nossa imperfeição como condição natural da existência.


A passagem do tempo reforça essa percepção. O que acreditamos aos vinte anos raramente resiste inalterado aos quarenta e é assim que deve ser. A maturidade nos convida a revisitar memórias, a perdoar escolhas feitas com a sabedoria que tínhamos, a compreender que não há verdades fixas sobre quem somos. Quanto mais exploramos esse território interno, mais percebemos sua vastidão. É como acender uma luz num cômodo e descobrir que a casa tem muitos outros, cheios de portas ainda fechadas.


Essa busca contínua é o que dá sentido à vida. Investigar o próprio ser é mais do que uma reflexão é uma forma de estar presente no mundo. É o gesto de quem quer viver de maneira consciente, sem se esconder atrás de máscaras antigas. O trabalho não termina porque o “eu” também é impermanente. E justamente por isso, essa jornada é infinita e bela: cada dia nos oferece a chance de ser uma versão mais verdadeira de nós mesmos.


Olhar para dentro é um ato de coragem. É aprender a escutar o que sentimos, a respeitar os intervalos, a acolher o que não se explica. É compreender que estamos em construção, e que o inacabado não é falta é espaço aberto para o que ainda pode nascer. Conhecer-se é continuar se tornando. E enquanto houver vida, haverá sempre algo novo a descobrir dentro de nós.

Por que autoconhecimento é um trabalho que nunca termina

Por Ana Luiza Faria

A ideia de felicidade para diferentes filósofos – colagem surrealista com mulher e flores secas
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

A felicidade sempre foi uma das maiores inquietações do pensamento humano. Desde a Antiguidade, filósofos têm buscado compreender o que significa ser feliz, se a felicidade é uma conquista interior, um estado passageiro ou uma construção ética e social. Essa busca atravessa os séculos, assumindo formas diversas conforme o tempo, a cultura e a concepção de homem e mundo. A felicidade, portanto, é uma ideia plural, espelhando os modos de viver e pensar de cada época.


Para Aristóteles, a felicidade ou eudaimonia era o fim último da existência humana, o bem supremo que orienta todas as ações. Em sua obra Ética a Nicômaco, ele afirma que todos os homens desejam ser felizes, mas que a verdadeira felicidade não se encontra no prazer ou na riqueza, e sim na prática da virtude. Viver de acordo com a razão e alcançar o equilíbrio entre os excessos é o caminho para a realização plena da natureza humana. Aristóteles via a felicidade como uma atividade da alma conforme a virtude, algo que se constrói no cotidiano, na relação com os outros e com o próprio caráter. Assim, ser feliz não é um estado de prazer constante, mas a harmonia entre o agir moral e a razão prática (phronesis).


Em contraponto, os estoicos, como Sêneca e Epicteto, acreditavam que a felicidade depende do domínio sobre si mesmo e da aceitação serena daquilo que não se pode controlar. A felicidade, nesse sentido, não está nas circunstâncias externas, mas na tranquilidade interior que nasce da sabedoria e da virtude. Sêneca, em suas Cartas a Lucílio, ensina que o sábio é aquele que se basta a si mesmo, que não é escravo das paixões nem se abala diante da adversidade. Para ele, a felicidade é liberdade interior um estado de espírito que floresce quando a alma está em paz consigo e com o destino. Essa visão ecoa profundamente no pensamento contemporâneo, onde o controle emocional e a serenidade se tornam antídotos contra o caos da vida moderna.


Já Epicuro, em sua Carta a Meneceu, propôs que a felicidade está no prazer, mas não no prazer desmedido e efêmero, e sim na ausência de dor e perturbação o ataraxia. Para ele, o prazer mais elevado é o da moderação, da amizade e da reflexão. Ao contrário da imagem vulgar de um hedonista, Epicuro defendia uma vida simples, guiada pelo equilíbrio e pela razão. O prazer, para ele, não era um convite ao excesso, mas ao contentamento: aprender a desejar menos é o segredo de uma alma tranquila. Assim, a felicidade é uma forma de liberdade interior, não a soma de experiências prazerosas.


Séculos depois, na modernidade, Immanuel Kant deslocou a discussão da felicidade para o campo da moralidade. Para ele, o ser humano não deve agir em busca da felicidade, mas por dever conforme o imperativo categórico. A moralidade, e não o prazer, é o verdadeiro norte da vida ética. Contudo, Kant reconhece que a felicidade é um desejo natural do homem, ainda que sua realização dependa de fatores fora de seu controle. O que importa, para ele, é agir corretamente, ainda que o resultado não traga prazer ou realização pessoal. A felicidade kantiana, portanto, é uma consequência indireta de uma vida ética, não seu objetivo direto.


Por outro lado, Friedrich Nietzsche subverteu as concepções tradicionais de felicidade ao afirmar que o homem deve criar seus próprios valores e afirmar a vida em toda a sua intensidade inclusive na dor. Em obras como Assim Falou Zaratustra, Nietzsche denuncia a busca pela felicidade como fuga do real, uma tentativa de negar a tragédia inerente à existência. Para ele, o homem forte é aquele que diz “sim” à vida, mesmo diante do sofrimento. A felicidade, nesse sentido, não é um repouso, mas uma expansão da força vital o gozo de afirmar o próprio destino, de viver sem ressentimento.


Na contemporaneidade, autores como Michel Foucault e Byung-Chul Han trazem novas leituras sobre o tema. Foucault, ao analisar as práticas de si na Antiguidade, mostra como a felicidade estava ligada ao cuidado de si e à estética da existência viver como uma obra de arte. Já Han, em A Sociedade do Cansaço, denuncia a busca moderna pela produtividade e desempenho como uma nova forma de infelicidade. Para ele, o homem contemporâneo vive exausto, prisioneiro de um ideal de felicidade baseado em performance e visibilidade. A felicidade, nesse contexto, perde sua dimensão ética e se transforma em mercadoria um produto a ser exibido, não vivido.


Ao percorrermos essas diferentes visões, percebemos que a felicidade nunca teve um único rosto. Para uns, é virtude; para outros, prazer; para outros ainda, resistência. Talvez, no fundo, o que une todos esses pensamentos seja a consciência de que a felicidade é inseparável da condição humana e que buscá-la é, também, buscar compreender a si mesmo. Viver filosoficamente é, portanto, um exercício de olhar para a vida com lucidez, sabendo que a felicidade pode não ser um destino, mas o próprio caminho que escolhemos trilhar com sentido e autenticidade.


Referências bibliográficas A ideia de felicidade para diferentes filósofos

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973.


EPICURO. Carta a Meneceu. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.


KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.


NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


SÊNECA. Cartas a Lucílio. Tradução de Lúcio Cardoso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.


FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.


HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

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