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Raul Seixas: Ouro de tolo e a crise de sentido

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 19 de jul.
  • 3 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista com Raul Seixas em estilo vintage, elementos simbólicos como disco voador,  zoológico sofá fazendo alusão a música

"Eu devia estar contente, porque eu tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês."

Assim começa Ouro de Tolo, uma das canções mais incisivas e desconcertantes de Raul Seixas. Lançada em 1973, a música não apenas desafia o ideal de sucesso vendido pela sociedade, como também expõe, com uma sinceridade incômoda, o desamparo que pode surgir exatamente quando tudo “dá certo”.


Raul canta a história de alguém que, aparentemente, venceu: tem emprego, reconhecimento, casa, carro, status. Tudo o que muitos desejam. No entanto, o tom é de cansaço, ironia e desencanto. O que parece ser um elogio ao sucesso se transforma, verso após verso, numa denúncia silenciosa do vazio que mora por trás das conquistas. "Mas confesso, abestalhado, que eu estou decepcionado, porque foi tão fácil conseguir. E agora eu me pergunto: e daí?"


Essa pergunta não é apenas retórica. Ela atravessa o ouvinte como um espelho desconfortável, pois sugere que talvez a busca por sucesso, quando descolada de sentido, nos leve não à plenitude, mas a uma forma sofisticada de fracasso. Um fracasso que se disfarça bem, porque usa gravata, frequenta zoológicos aos domingos e sorri nas fotos de família.


Esse movimento de conquistar tudo e, ainda assim, sentir que algo essencial falta tem nome na psicanálise. Em 1916, Freud escreveu sobre o que chamou de "os que fracassam ao triunfar". Pessoas que adoecem, tropeçam ou entram em crise exatamente no momento em que seus desejos se realizam. É como se o sucesso ativasse um conflito inconsciente: ao invés de satisfação, ele desencadeia culpa, angústia ou uma sabotagem silenciosa. O desejo, quando alcançado, mostra-se insustentável. E a pessoa entra em colapso justamente quando tudo parece bem.


Ouro de Tolo é quase um retrato desse tipo clínico, mas com um agravante existencial: o personagem da música não apenas percebe que o sucesso não o satisfaz, como também começa a questionar se todo o caminho que percorreu até ali fazia sentido. Ele olha para a vida que construiu e se sente ridículo, entediado, deslocado. Nada parece mais ter graça nem o zoológico, nem o carro, nem o jornal. É a experiência de um sujeito que foi convencido de que bastava seguir o roteiro para ser feliz. E, quando chega ao final, encontra o roteiro... vazio.


A alienação da qual Raul fala não é apenas social, mas profunda. É o adormecimento do olhar, da escuta, do sentir. Viver, para esse personagem, se transformou numa sequência de gestos automáticos. Uma existência que acontece, mas que não é realmente vivida. Ele diz: "Eu acho tudo isso um saco. É você olhar no espelho, se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo, limitado". Há algo de profundamente humano nesse estranhamento como se ele finalmente percebesse o quanto estava ocupado em ser alguém que os outros reconhecessem, sem nunca se perguntar se era isso que realmente queria ser.


Ao recusar “sentar no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”, Raul rompe com essa lógica. Ele escolhe não aceitar a existência domesticada, ainda que confortável. E é nesse ponto que a música encontra sua transcendência: na recusa em se contentar com uma vida que parece plena, mas que internamente está desabitada.


O último verso, aparentemente enigmático, é uma chave para compreender esse deslocamento: “No cume calmo do meu olho que vê, assenta a sombra sonora dum disco voador.” Essa imagem surreal, quase psicodélica, pode ser lida como um convite ao olhar que se eleva à capacidade de ver além das cercas, dos quintais, dos pequenos limites que nos separam de nós mesmos. O disco voador, nesse contexto, é metáfora para o espanto, para o mistério, para o desconhecido que nos habita e que insistimos em evitar quando nos contentamos com uma vida previsível.


Raul canta, sem metáforas delicadas, o que muitos sentem mas não sabem nomear: que nem todo sucesso é conquista, e que às vezes o pior fracasso é o que vem disfarçado de vitória. Ele fala da angústia de quem teve tudo, mas percebe que nada disso basta e que talvez a verdadeira revolução não seja mudar de vida, mas acordar dentro dela.

 Raul Seixas Ouro de tolo

Talvez o que mais assuste não seja o fracasso, mas descobrir que o sucesso também não basta.


Se uma música ou um filme insiste em você dias depois, talvez esteja tocando algo que ainda não foi nomeado algo que te chama a escutar, não lá fora, mas dentro.


Tag: Raul Seixas Ouro de tolo

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