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Escritos, artigos e catarses

Por Ana Luiza Faria

Capa da série

Existe algo profundamente inquietante em um mundo onde todas as pessoas parecem felizes demais. Em Pluribus, o sorriso constante não tranquiliza ele ameaça. A felicidade coletiva soa artificial, quase mecânica, como se não pertencesse ao corpo que a expressa. E é justamente nesse desconforto que a série se firma: ela não está falando de um vírus, mas de como a sociedade contemporânea molda emoções para caber em discursos de produtividade, leveza e positividade permanente. A série usa a ficção científica como lente para ampliar um fenômeno real: a pressão para parecer bem o tempo todo. O vírus, que transforma as pessoas em versões exageradamente felizes, funciona como metáfora de um positivismo tóxico que tem crescido silenciosamente. No mundo real, também existe a exigência de sorrir, de passar por cima da dor, de responder “estou bem” mesmo quando nada está bem. A felicidade se torna performática e é nessa performance que Pluribus constrói sua crítica.


Carol Sturka, imune ao vírus, não é apenas a protagonista; ela simboliza o indivíduo que ainda sente em profundidade num ambiente que recompensa apenas emoções “agradáveis”. Sua imunidade a coloca num lugar de risco, porque sentir demais num mundo que sente de menos é quase um ato subversivo. Psicologicamente, Carol representa aqueles que vivem a dissonância emocional: pessoas cuja vivência interna não acompanha o tom coletivo e que, por isso, passam a ocupar um lugar de estranheza. Carol não está desconectada por frieza, mas por honestidade emocional. Ela preserva algo que os outros perderam: o vínculo com a própria subjetividade.


O comportamento dos infectados, sempre uniformemente calmo, doce e previsível, revela algo ainda mais inquietante: quando as emoções desagradáveis são eliminadas, o indivíduo perde também grande parte da capacidade de questionamento. A ausência de conflito interior facilita o conformismo. É como se o vírus apagasse não só a dor, mas a própria identidade. Na psicologia social, sabemos que a massa homogênea é mais fácil de controlar. Pluribus dramatiza essa ideia ao mostrar que a felicidade compulsória cria um coletivo dócil, adaptável, pronto para obedecer. A uniformização emocional não é um efeito colateral é um mecanismo de controle.


A série aprofunda ainda mais a discussão ao sugerir que os infectados perdem acesso às lembranças dolorosas. E isso tem implicações diretas: sem dor, não há elaboração; sem elaboração, não há história; sem história, não existe identidade. O sofrimento, por mais incômodo que seja, participa ativamente da construção do self. Ele define limites, orienta decisões, cria sentido e profundidade. Quando Pluribus remove a dor das pessoas, remove também sua narrativa emocional. A felicidade vira ruído branco, incapaz de sustentar qualquer reflexão sobre a própria vida.


Esse processo de apagar emoções desagradáveis acompanha outra violência presente na série: a imposição silenciosa de que todos devem estar bem. Na vida real, muitas pessoas enfrentam essa cobrança: a de se manterem positivos, resilientes e leves, mesmo enquanto carregam cicatrizes internas. Pluribus transforma essa pressão social em epidemia. A felicidade exigida, constante e obrigatória é uma forma de agressão emocional, pois desautoriza qualquer sentimento que não se enquadre no padrão. A tristeza vira falha. A inquietação vira defeito. A melancolia vira patologia. E quando uma sociedade não tolera a dor, ela produz indivíduos que aprendem a esconder tudo o que os torna humanos.


Nesse cenário, o título da série Pluribus, “de muitos” soa irônico. Há muitas pessoas, mas pouca pluralidade. A protagonista é uma das únicas que permanece plural, capaz de sentir camadas, contradições, nuances. Carol ainda carrega aquilo que os outros perderam: a complexidade. Enquanto os infectados se transformam em versões diferentes de um mesmo molde, ela insiste em preservar seu self verdadeiro. É nesse contraste que a série revela seu ponto mais profundo: a autenticidade tem custo. Ser quem se é, num ambiente que deseja cópias, torna-se perigoso.


A pergunta que atravessa a narrativa, e que inevitavelmente atravessa quem assiste, é simples e devastadora: o que você estaria disposto a perder para nunca mais sofrer? A humanidade? A autenticidade? A consistência interna? A capacidade de se emocionar? A história que te trouxe até aqui? A série responde ao mostrar que uma vida sem dor não é uma vida, mas uma anestesia. Confortável, talvez. Segura, possivelmente. Mas vazia. Sem dor, não existe transformação; sem conflito, não há crescimento; sem vulnerabilidade, não há vínculo. A dor não é inimiga ela é parte da linguagem do corpo, um código que revela caminhos.


No fim, Pluribus não é apenas uma série sobre felicidade artificial. É um comentário sobre o risco de tentar domesticar emoções humanas em prol de uma existência sem turbulências. É um lembrete de que aquilo que nos torna vulneráveis é também aquilo que nos torna profundos. E, sobretudo, é uma afirmação silenciosa de que sentir mesmo quando dói é um ato de resistência num mundo que tenta transformar todos em versões idênticas de uma felicidade sem raiz. A série nos convida a pensar que talvez o perigo não esteja em sentir demais, mas em parar de sentir por completo.


Pluribus: uma análise psicológica da série que transforma felicidade em mecanismo de controle

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista de mulher serena entre flores secas e linhas douradas representando o valor da simplicidade em tempos de excesso
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

Vivemos uma era em que tudo parece gritar por atenção. São vozes, imagens, opiniões e estímulos que se sobrepõem, disputando o espaço do olhar e da mente. O excesso tornou-se parte do cotidiano, travestido de eficiência, produtividade e sucesso. No entanto, quanto mais acumulamos informações, objetos, tarefas, expectativas mais distante parece ficar o essencial. A simplicidade, outrora associada à pureza e à clareza, hoje se revela quase como um ato de resistência silenciosa.


Ser simples não é ser menos. Pelo contrário, é um exercício de discernimento. É a capacidade de escolher o que realmente importa, de perceber a diferença entre o que é necessário e o que é apenas ruído. A simplicidade convida à pausa não aquela imposta pelo cansaço, mas a que nasce do desejo genuíno de estar presente. É um gesto de maturidade emocional, uma forma de cuidado consigo e com o mundo.


Em tempos de excesso, tudo se torna veloz e descartável: conversas, relações, desejos. A complexidade se confunde com profundidade, e o acúmulo é tomado como sinônimo de valor. No entanto, a vida não se mede pela soma do que possuímos, mas pela qualidade do que conseguimos sustentar internamente. A simplicidade devolve profundidade às coisas. Quando o olhar desacelera, o banal se revela extraordinário: o café que esfria devagar, o som da chuva, o silêncio que existe entre uma palavra e outra.


A simplicidade não é uma estética, é uma postura. Ela implica renúncia o que muitas vezes é o que mais assusta. Abrir mão do que é supérfluo, das distrações que anestesiam, das urgências inventadas pelo ritmo do mundo. Requer coragem para desapegar-se das camadas que escondem o que é autêntico. Exige um tipo de coragem que não se exibe, que se manifesta na serenidade de quem aprendeu a escutar mais do que falar, a observar mais do que intervir.


Há uma beleza discreta naquilo que é simples. É a beleza que não precisa se afirmar, que não depende de adornos para existir. É o que se mantém inteiro mesmo quando tudo ao redor parece em colapso. Essa beleza não se impõe ela se insinua, como uma brisa que chega sem anunciar. Em um mundo saturado de imagens e ruídos, talvez o maior luxo seja poder respirar sem pressa, habitar um espaço interno onde as coisas não precisam ser excessivas para serem significativas.


A simplicidade também é uma forma de ética. Ela nos convida a um modo de vida mais consciente, mais cuidadoso com o tempo e com os outros. Quando nos libertamos da lógica do acúmulo, abrimos espaço para a escuta, para a empatia, para a presença real. Descobrimos que menos não é vazio, mas espaço, o espaço necessário para que o que é essencial possa florescer.


Em tempos de excesso, escolher a simplicidade é um gesto subversivo. É dizer não ao barulho, ao consumo desenfreado, à pressa que nos rouba a alma. É escolher viver com intenção, com clareza, com delicadeza. A simplicidade não é um retorno ao passado, mas um caminho de volta para si. É a arte de se reconciliar com o que é suficiente e descobrir, enfim, que o suficiente sempre foi o bastante.


O valor da simplicidade em tempos de excesso

Por Ana Luiza Faria

Ilustração conceitual de Nachträglichkeit: o enigma temporal do inconsciente
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

Algo em nossa vida psíquica não obedece a uma linha temporal simples: o que acontece "antes" e o que acontece "depois" entrelaçam-se de maneira que o passado só se torna verdadeiro ou verdadeiro para o sujeito no instante em que o presente lhe concede significado. Essa é a experiência do enigma temporal do inconsciente: uma temporalidade dobrada, onde o efeito precede a aparente causa e a história psíquica se escreve em retrocesso. Não se trata apenas de memória cronológica, mas de uma operação que reatribui sentido ao passado a partir de um posterior que o transforma.


Freud colocou essa operação no centro da teoria quando introduziu o conceito alemão Nachträglichkeit, frequentemente traduzido como ação retroativa ou efeito tardio. Para ele, certos acontecimentos não deixam traço traumático quando ocorrem; só o adquirem quando uma vicissitude ulterior um desenvolvimento corporal, afetivo ou simbólico lhes concede a carga que faltava. Assim, aquilo que parecia inócuo no passado recebe, depois, a qualidade traumática que explicará sintomas, sonhos e repetições. O que muda não é o fato bruto, mas o modo como ele é aprisionado no aparelho psíquico através de uma leitura posterior que o converte em enigma, em força que insiste.


Essa retroação exige compreender alguns vetores da dinâmica freudiana: lembrança, repressão e repetição. A lembrança não é simples restituição; ela pode ser transformada em sintoma quando o sujeito, por operação inconsciente, lhe confere um valor novo. A repressão, por sua vez, não elimina o registro; ela desloca-o para outra lógica temporal o que foi recalcado pode permanecer latente até que um evento subsequente lhe faça adquirir urgência. A repetição compulsiva, então, aparece como um dispositivo pelo qual o passado reativado insiste no presente: não para narrar o que ocorreu, mas para encenar a interlocução entre o que foi vivido e aquilo que mais tarde o nomeou. Em termos freudianos, há uma inversão: o efeito subsequente constitui a causa psíquica do que se instalará como sintoma.


Freud vinculou essa operação também ao estatuto da sexualidade e do desenvolvimento: pulsões e transformações corporais introduzem significações que reescrevem lembranças infantis sob uma luz nova. O que antes era fragmento sensorial ou cena sem sentido torna-se, por efeito de uma nova etapa pulsional, gramática de um mal-estar. Isso cria uma temporalidade não linear uma história que se compõe por adições retroativas em vez de apenas por acumulações cronológicas. O inconsciente, por essa via, não é depósito inerte, mas agência temporária que reinterpreta e reordena.


Enfatizar Nachträglichkeit é perceber que a constituição do sujeito ocorre em camadas temporais que se respondem reciprocamente: o que nos funda como sujeito não é uma sequência unívoca de eventos, mas a lembrança do passado trabalhada posteriormente por significações que o atravessam. Assim, a subjetividade contém um atraso constitutivo: aquilo que nos forma muitas vezes só ganha forma depois através de revisitações que alteram o original. Quando algo se instala em nós como resistência, quando aquilo que insiste recusa a palavra e retorna em forma de sintoma, é a marca dessa retroação. O sujeito não é simplesmente aquilo que aconteceu com ele, mas aquilo que o passado veio a significar quando o presente o leu de outro modo.


Essa estrutura temporal tem consequências existenciais profundas. Primeiro, ela modifica o modo como o sujeito ocupa o tempo: passado e presente deixam de ser compartimentos estanques; o sujeito vive num presente que constantemente reescreve o passado, e num passado que impõe demandas no presente. Isso produz uma forma de existência ambivalente: há no sujeito um sentimento de continuidade e, ao mesmo tempo, de estranhamento como se partes de sua própria história só se tornassem vivas quando retornam sob outra luz. Em segundo lugar, a retroação coloca a experiência do eu em permanente trabalho de tradução. O que permanece sem palavra volta-se como insistência; o que foi dito tarde demais transforma-se em tremor silencioso nas relações consigo e com o mundo. Não é apenas memória que falha ou sobra: é uma economia temporal que regula o peso dos afetos, a posição do desejo e a capacidade de narrar-se.


Há também uma dimensão ética e política da existência presenciada por essa temporalidade. Quando a formação do sujeito opera por retroação, qualquer ideia de autoria plena sobre a própria vida se torna problemática. O sujeito descobre que o sentido de suas escolhas muitas vezes foi costurado por retornos e revisões que subvertem a espontaneidade esperada. Isso não anula a agência, mas a coloca sob a condição de uma historicidade sempre incompleta: somos, em parte, o produto de significações que apenas mais tarde nos alcançam e que nos obrigam a reconhecer uma história que não se exaure no seu relato inicial.


Finalmente, o enigma temporal do inconsciente nos confronta com um paradoxo humano: a necessidade de coerência narrativa e a impossibilidade de fechá-la definitivamente. Quando o passado se altera por uma leitura posterior, qualquer tentativa de fixar uma única versão de si esbarra em outras versões potenciais que aguardam seu turno de retroagir. Isso abre um campo de inquietação criativa: o sujeito pode encontrar, nas lacunas e nas reatribuições de sentido, o material para pensamento, arte e crítica mas também para sofrimento, repetição e enclausuramento.


Ao fim, resta a pergunta que não quer solução pronta, mas que nos convoca a atenção: como viver sabendo que parte do que somos só adquire realidade quando o futuro nos volta ao passado? Essa pergunta não pede conserto, pede escuta uma escuta que reconheça a temporalidade dobrada do nosso íntimo e aceite que o autoconhecimento, quando acontece, chega sempre com atraso e, por isso mesmo, com a capacidade de reabrir o que parecia fechado.


Nachträglichkeit: o enigma temporal do inconsciente

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