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Escritos, artigos e catarses

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista de uma mulher com flores e folhas secas representando a filosofia da liberdade em Sartre
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

A noção de liberdade ocupa um lugar central no pensamento de Jean-Paul Sartre. Para o filósofo existencialista francês, o ser humano está condenado a ser livre, isto é, lançado em um mundo sem fundamentos transcendentes que determinem suas escolhas, resta-lhe apenas a responsabilidade de criar-se continuamente através de seus atos. Essa concepção de liberdade rompe com tradições filosóficas que buscavam ancorar a existência em essências pré-determinadas, como na metafísica aristotélica, ou em estruturas racionais universais, como em Kant.


Em O Ser e o Nada (1943), Sartre defende que a existência precede a essência, o que significa que o ser humano não nasce com um propósito fixo; ao contrário, constrói a si mesmo a cada decisão. O indivíduo é, antes de tudo, projeto. Assim, a liberdade não é apenas um direito ou uma possibilidade externa, mas uma condição ontológica do ser humano. “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo” (SARTRE, 2015, p. 29).


Essa perspectiva coloca o sujeito em uma posição de responsabilidade radical. Diferente de correntes deterministas, que explicam a ação humana por meio de causas externas sejam elas sociais, biológicas ou divinas , Sartre enfatiza que sempre há escolha. Mesmo diante de circunstâncias limitantes, o indivíduo escolhe como responder a elas. É nesse ponto que surge a angústia existencial: a percepção de que não há justificativas externas para nossas escolhas, apenas a liberdade absoluta e o peso da responsabilidade.


A filosofia sartriana dialoga criticamente com Kant. Embora ambos reconheçam a autonomia como núcleo da liberdade, Kant a concebia a partir da lei moral universal, onde a razão confere legitimidade à ação. Já Sartre dissolve essa universalidade: não há lei racional prévia que dite o caminho; a cada ato, o homem inventa valores. Essa diferença evidencia o salto radical do existencialismo em direção a uma liberdade sem garantias transcendentes.


Se compararmos Sartre a Hegel, encontramos outra tensão. Para Hegel, a liberdade se realiza no movimento dialético da história, quando o espírito absoluto reconhece a si mesmo no mundo. Em Sartre, porém, não há uma teleologia histórica que assegure o destino da liberdade. Ela é vivida concretamente por cada sujeito, em suas escolhas cotidianas, em meio ao absurdo da existência.


Um dos aspectos mais provocativos da filosofia sartriana é a ideia de má-fé (mauvaise foi). Trata-se da tentativa do indivíduo de escapar de sua liberdade, assumindo papéis sociais ou crenças rígidas como se fossem essências definitivas. Quando alguém se esconde atrás de justificativas “sou apenas assim”, “não tive escolha”, cai na má-fé. O oposto da má-fé é a autenticidade, isto é, o reconhecimento da liberdade como condição inevitável e a assunção plena da responsabilidade pelos próprios atos.


Ao aproximarmos Sartre de Nietzsche, encontramos afinidades na crítica às essências fixas e ao peso da moral tradicional. Nietzsche fala do Übermensch como aquele que cria valores em um mundo sem garantias divinas; Sartre, por sua vez, insiste que o homem inventa a si mesmo em um processo contínuo de escolhas. Ambos, cada qual a seu modo, apontam para a coragem de viver em um universo desprovido de fundamentos absolutos.


A liberdade, para Sartre, não é apenas possibilidade abstrata, mas está sempre enraizada em situações concretas. Essa ideia foi aprofundada em sua obra posterior, Crítica da Razão Dialética (1960), onde introduz o conceito de liberdade situada. Aqui, Sartre reconhece que fatores históricos e sociais impõem condições objetivas, mas, mesmo nelas, o sujeito continua responsável por suas escolhas. A liberdade, portanto, nunca é absoluta no sentido prático, mas continua ontologicamente inescapável.


Ao refletirmos sobre a filosofia da liberdade em Sartre, percebemos um convite ao enfrentamento da vida em sua inteireza. A existência humana não está garantida por essências, leis morais ou teleologias históricas. Ela é, antes, o campo aberto da criação de si. Essa responsabilidade radical pode parecer angustiante, mas é também aquilo que confere sentido à vida: a liberdade é, em última instância, o destino do homem.


Referências Bibliográficas

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2012.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SARTRE, J.-P. O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 2015.

SARTRE, J.-P. Crítica da Razão Dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista delicada de nostalgia, ruas italianas, Belle Époque e músicas francesas
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

Desde criança carrego comigo uma sensação estranha: o encanto profundo por lugares que jamais pisei, por épocas que apenas surgem nos meus sonhos e por músicas que parecem me reconhecer antes mesmo de eu existir. Cresci ouvindo melodias de Edith Piaf, sentindo cada palavra em francês como se meu coração entendesse algo que minha mente ainda não decifrava. Há algo de fascinante no que não foi vivido, naquilo que só se percebe no eco das imagens que nos perseguem, sutil e constante.

Penso em ruas estreitas de cidades italianas, com suas fachadas amareladas, varandas de ferro forjado e portas gastas pelo tempo. Imagino o aroma de café recém-passado misturado ao perfume das flores que alguém deixou em um vaso, no canto da janela. Cada pedra antiga parece carregar histórias que eu nunca vivi, mas que reconheço, como se meus passos pudessem, algum dia, se encaixar nos contornos de uma memória emprestada.

A Belle Époque me chama com sua elegância discreta, os vestidos longos, os chapéus ornamentados, o brilho das luzes de gás que iluminam as praças e cafés onde artistas discutem ideias que moldaram o mundo. Sinto uma estranha familiaridade com essa época, como se cada gesto, cada riso e cada olhar fossem ecos de uma vida que nunca foi minha, mas que me pertence de forma invisível.

E então estão as canções. Piaf canta uma dor que transcende o tempo, uma saudade que atravessa fronteiras e séculos. Suas palavras se tornam pontes para lugares que não visitei, para encontros que nunca aconteceram, para histórias que jamais escrevi. Sinto-me envolta por um sentimento que mistura admiração e melancolia, um fio invisível que liga meu presente a algo que só existe na memória alheia.

Talvez essa sensação seja a forma que encontrei de viver múltiplas vidas ao mesmo tempo: a minha, e todas aquelas que me visitam nos gestos de pessoas que caminharam antes de mim. Um café tomado sob o sol do fim da tarde em uma praça italiana, um acorde francês que parece sussurrar histórias antigas, o vento que move cortinas de linho em prédios que jamais fotografei, mas que minha mente insiste em decorar. É uma presença que não pesa, mas que deixa marcas delicadas, como as linhas finas de ouro que contornam uma página antiga de um livro esquecido.

E assim sigo, marcado por essa estranha familiaridade. Caminho por ruas que nunca pisei, ouço canções de outras gerações, sinto a brisa de mares que não conheci. Ainda assim, tudo isso é meu, porque mora em mim. Essa saudade funciona como um espelho que não reflete o que fui, mas o que poderia ter sido: uma saudade sem objeto, mas cheia de pertencimento.

Talvez seja isso: um coração que, mesmo sem lembrar, insiste em reconhecer.

Saudades de algo que nunca vivi




Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista de homem contemplativo com flores secas e linhas douradas representando a Síndrome de Charles Bonnet: alucinações visuais em cegos
© Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é um fenômeno neuropsicológico intrigante, caracterizado pela presença de alucinações visuais complexas em indivíduos com perda parcial ou total da visão, mas que preservam funções cognitivas e insight sobre sua condição. Embora seja descrita desde o século XVIII, ainda hoje permanece cercada de estigmas e confusões clínicas, sendo muitas vezes interpretada como sinal de psicose, demência ou sofrimento psiquiátrico primário. No entanto, a SCB não está relacionada a um transtorno mental, mas sim a mecanismos neurobiológicos e perceptivos ligados à atividade cerebral em contexto de privação sensorial.

Do ponto de vista neuropsicológico, a síndrome pode ser compreendida como uma consequência da chamada teoria da liberação cortical. Quando há diminuição ou ausência de estímulos visuais provenientes da retina ou do nervo óptico, regiões corticais responsáveis pelo processamento visual especialmente no córtex occipital e áreas associativas permanecem metabolicamente ativas. A ausência de entrada sensorial adequada gera um processo de desinibição e hiperexcitabilidade neuronal, resultando em percepções autogeradas pelo próprio sistema nervoso. Nesse sentido, a SCB pode ser comparada a um “ruído interno” que se manifesta em forma de imagens, padrões geométricos, pessoas, animais ou cenários inteiros.

Estudos de neuroimagem corroboram essa hipótese ao demonstrarem aumento da atividade em áreas visuais primárias e secundárias durante os episódios alucinatórios, mesmo sem estímulo externo. Esse fenômeno se conecta à teoria da neuroplasticidade mal-adaptativa, que sugere que, diante da privação sensorial prolongada, o cérebro reorganiza suas redes de forma a preencher a lacuna perceptiva, ainda que isso resulte em experiências distorcidas ou irreais. A plasticidade, nesse caso, não se traduz em benefício funcional, mas em uma adaptação imperfeita que produz experiências vívidas, porém descontextualizadas.

Outro ponto relevante é a relação entre a SCB e a teoria da predição perceptiva. De acordo com esse modelo, o cérebro não apenas recebe estímulos, mas também antecipa padrões do mundo externo, preenchendo lacunas quando a informação é insuficiente. Em indivíduos com deficiência visual, o sistema de predição continua ativo, mas, sem feedback sensorial adequado, as previsões se transformam em alucinações. Assim, a SCB evidencia de maneira clara a natureza construtiva da percepção humana: não vemos apenas com os olhos, mas com o cérebro que interpreta, completa e recria o mundo.

Clinicamente, é fundamental diferenciar a SCB de quadros psicóticos, já que os pacientes mantêm consciência crítica sabem que as visões não são reais, ainda que sejam intensas e detalhadas. Essa preservação do insight é um dos elementos centrais para o diagnóstico diferencial. Além disso, compreender o fenômeno tem relevância terapêutica: ao reconhecer a origem neuropsicológica e não psiquiátrica, é possível reduzir o sofrimento emocional associado ao medo de “estar enlouquecendo”, comum entre os pacientes.

Do ponto de vista da reabilitação, intervenções que ampliam a estimulação sensorial residual, como técnicas de treino visual, iluminação adequada e apoio psicoterapêutico, podem contribuir para a diminuição da frequência das alucinações. Isso se alinha à concepção neuropsicológica de que a percepção é um processo dinâmico, modulado tanto por inputs externos quanto pela atividade intrínseca das redes cerebrais.

A síndrome de Charles Bonnet, portanto, revela aspectos fundamentais da neuropsicologia contemporânea: a plasticidade cerebral, os limites da percepção preditiva e a relação entre ausência de estímulo e hiperatividade cortical. Mais do que uma curiosidade clínica, trata-se de uma janela para compreender como o cérebro constrói a realidade e como essa construção pode persistir mesmo diante da ausência dos sentidos. Referências bibliográficas

  • MENON, G. J. Complex visual hallucinations in the visually impaired: A structured history-taking approach. Archives of Ophthalmology, v. 123, n. 3, p. 349–355, 2005. https://doi.org/10.1001/archopht.123.3.349


  • SCHULTZ, G.; MELZACK, R.; RANSOHOFF, J. The Charles Bonnet syndrome: “Phantom visual images.” Perception, v. 20, n. 6, p. 809–825, 1991. https://doi.org/10.1068/p200809


  • TEUNISSE, R. J.; CRUYSBERG, J. R.; VERBEEK, A.; ZITMAN, F. G. The Charles Bonnet Syndrome: A large prospective study in the Netherlands. British Journal of Psychiatry, v. 166, n. 2, p. 254–257, 1995. https://doi.org/10.1192/bjp.166.2.254


  • FFYTCHE, D. H. Visual hallucinations in eye disease. Current Opinion in Neurology, v. 22, n. 1, p. 28–35, 2009. https://doi.org/10.1097/WCO.0b013e32831f1bff


  • BURKE, W. The neural basis of Charles Bonnet hallucinations: A hypothesis. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, v. 73, n. 5, p. 535–541, 2002. https://doi.org/10.1136/jnnp.73.5.535


  • COLLERTON, D.; PERRY, E.; MCKEITH, I. Why people see things that are not there: A novel Perception and Attention Deficit model for recurrent complex visual hallucinations. Behavioral and Brain Sciences, v. 28, n. 6, p. 737–757, 2005. https://doi.org/10.1017/S0140525X05000130


  • SCHADLU, A. P.; SCHADLU, R.; SHEPHERD, J. B. Charles Bonnet syndrome: A review. Current Opinion in Ophthalmology, v. 20, n. 3, p. 219–222, 2009. https://doi.org/10.1097/ICU.0b013e32832b86fa



Síndrome de Charles Bonnet: alucinações visuais em cegos

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