#05 Crônica | Saudades de algo que nunca vivi
- Ana Luiza Faria
- 23 de set.
- 2 min de leitura
Por Ana Luiza Faria

Desde criança carrego comigo uma sensação estranha: o encanto profundo por lugares que jamais pisei, por épocas que apenas surgem nos meus sonhos e por músicas que parecem me reconhecer antes mesmo de eu existir. Cresci ouvindo melodias de Edith Piaf, sentindo cada palavra em francês como se meu coração entendesse algo que minha mente ainda não decifrava. Há algo de fascinante no que não foi vivido, naquilo que só se percebe no eco das imagens que nos perseguem, sutil e constante.
Penso em ruas estreitas de cidades italianas, com suas fachadas amareladas, varandas de ferro forjado e portas gastas pelo tempo. Imagino o aroma de café recém-passado misturado ao perfume das flores que alguém deixou em um vaso, no canto da janela. Cada pedra antiga parece carregar histórias que eu nunca vivi, mas que reconheço, como se meus passos pudessem, algum dia, se encaixar nos contornos de uma memória emprestada.
A Belle Époque me chama com sua elegância discreta, os vestidos longos, os chapéus ornamentados, o brilho das luzes de gás que iluminam as praças e cafés onde artistas discutem ideias que moldaram o mundo. Sinto uma estranha familiaridade com essa época, como se cada gesto, cada riso e cada olhar fossem ecos de uma vida que nunca foi minha, mas que me pertence de forma invisível.
E então estão as canções. Piaf canta uma dor que transcende o tempo, uma saudade que atravessa fronteiras e séculos. Suas palavras se tornam pontes para lugares que não visitei, para encontros que nunca aconteceram, para histórias que jamais escrevi. Sinto-me envolta por um sentimento que mistura admiração e melancolia, um fio invisível que liga meu presente a algo que só existe na memória alheia.
Talvez essa sensação seja a forma que encontrei de viver múltiplas vidas ao mesmo tempo: a minha, e todas aquelas que me visitam nos gestos de pessoas que caminharam antes de mim. Um café tomado sob o sol do fim da tarde em uma praça italiana, um acorde francês que parece sussurrar histórias antigas, o vento que move cortinas de linho em prédios que jamais fotografei, mas que minha mente insiste em decorar. É uma presença que não pesa, mas que deixa marcas delicadas, como as linhas finas de ouro que contornam uma página antiga de um livro esquecido.
E assim sigo, marcado por essa estranha familiaridade. Caminho por ruas que nunca pisei, ouço canções de outras gerações, sinto a brisa de mares que não conheci. Ainda assim, tudo isso é meu, porque mora em mim. Essa saudade funciona como um espelho que não reflete o que fui, mas o que poderia ter sido: uma saudade sem objeto, mas cheia de pertencimento.
Talvez seja isso: um coração que, mesmo sem lembrar, insiste em reconhecer.
Saudades de algo que nunca vivi


