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Síndrome de Charles Bonnet: Alucinações visuais em cegos

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 22 de set.
  • 3 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista de homem contemplativo com flores secas e linhas douradas representando a Síndrome de Charles Bonnet: alucinações visuais em cegos
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A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é um fenômeno neuropsicológico intrigante, caracterizado pela presença de alucinações visuais complexas em indivíduos com perda parcial ou total da visão, mas que preservam funções cognitivas e insight sobre sua condição. Embora seja descrita desde o século XVIII, ainda hoje permanece cercada de estigmas e confusões clínicas, sendo muitas vezes interpretada como sinal de psicose, demência ou sofrimento psiquiátrico primário. No entanto, a SCB não está relacionada a um transtorno mental, mas sim a mecanismos neurobiológicos e perceptivos ligados à atividade cerebral em contexto de privação sensorial.

Do ponto de vista neuropsicológico, a síndrome pode ser compreendida como uma consequência da chamada teoria da liberação cortical. Quando há diminuição ou ausência de estímulos visuais provenientes da retina ou do nervo óptico, regiões corticais responsáveis pelo processamento visual especialmente no córtex occipital e áreas associativas permanecem metabolicamente ativas. A ausência de entrada sensorial adequada gera um processo de desinibição e hiperexcitabilidade neuronal, resultando em percepções autogeradas pelo próprio sistema nervoso. Nesse sentido, a SCB pode ser comparada a um “ruído interno” que se manifesta em forma de imagens, padrões geométricos, pessoas, animais ou cenários inteiros.

Estudos de neuroimagem corroboram essa hipótese ao demonstrarem aumento da atividade em áreas visuais primárias e secundárias durante os episódios alucinatórios, mesmo sem estímulo externo. Esse fenômeno se conecta à teoria da neuroplasticidade mal-adaptativa, que sugere que, diante da privação sensorial prolongada, o cérebro reorganiza suas redes de forma a preencher a lacuna perceptiva, ainda que isso resulte em experiências distorcidas ou irreais. A plasticidade, nesse caso, não se traduz em benefício funcional, mas em uma adaptação imperfeita que produz experiências vívidas, porém descontextualizadas.

Outro ponto relevante é a relação entre a SCB e a teoria da predição perceptiva. De acordo com esse modelo, o cérebro não apenas recebe estímulos, mas também antecipa padrões do mundo externo, preenchendo lacunas quando a informação é insuficiente. Em indivíduos com deficiência visual, o sistema de predição continua ativo, mas, sem feedback sensorial adequado, as previsões se transformam em alucinações. Assim, a SCB evidencia de maneira clara a natureza construtiva da percepção humana: não vemos apenas com os olhos, mas com o cérebro que interpreta, completa e recria o mundo.

Clinicamente, é fundamental diferenciar a SCB de quadros psicóticos, já que os pacientes mantêm consciência crítica sabem que as visões não são reais, ainda que sejam intensas e detalhadas. Essa preservação do insight é um dos elementos centrais para o diagnóstico diferencial. Além disso, compreender o fenômeno tem relevância terapêutica: ao reconhecer a origem neuropsicológica e não psiquiátrica, é possível reduzir o sofrimento emocional associado ao medo de “estar enlouquecendo”, comum entre os pacientes.

Do ponto de vista da reabilitação, intervenções que ampliam a estimulação sensorial residual, como técnicas de treino visual, iluminação adequada e apoio psicoterapêutico, podem contribuir para a diminuição da frequência das alucinações. Isso se alinha à concepção neuropsicológica de que a percepção é um processo dinâmico, modulado tanto por inputs externos quanto pela atividade intrínseca das redes cerebrais.

A síndrome de Charles Bonnet, portanto, revela aspectos fundamentais da neuropsicologia contemporânea: a plasticidade cerebral, os limites da percepção preditiva e a relação entre ausência de estímulo e hiperatividade cortical. Mais do que uma curiosidade clínica, trata-se de uma janela para compreender como o cérebro constrói a realidade e como essa construção pode persistir mesmo diante da ausência dos sentidos. Referências bibliográficas

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