O esquecimento como função adaptativa: a sabedoria de não lembrar tudo
- Ana Luiza Faria
- 18 de set.
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Por Ana Luiza Faria

É comum a cena de abrir a porta de um cômodo e esquecer o motivo de ter ido até lá. A princípio, parece apenas um descuido ou falha da memória. No entanto, situações como essa revelam algo mais profundo: o esquecimento não é um defeito do cérebro, mas parte de um mecanismo essencial para a saúde mental e para a capacidade de adaptação ao ambiente. A ideia de que seria vantajoso lembrar de absolutamente tudo pode soar tentadora, mas a ciência mostra que a seletividade da memória é justamente o que garante maior eficiência ao pensamento humano.
Pesquisas em neurociência indicam que o cérebro humano armazena cerca de 2,5 petabytes de informação ao longo da vida, mas, ao contrário de um computador, esse armazenamento não funciona como uma cópia integral de tudo que vivemos. Estudo da Universidade de Toronto (2017), liderado por Blake Richards e Paul Frankland, mostrou que o esquecimento desempenha papel ativo na tomada de decisões. A mente não busca guardar fielmente cada detalhe, mas priorizar informações relevantes para o presente e o futuro. Ao apagar ou enfraquecer memórias, cria espaço para a generalização e para a flexibilidade cognitiva.
Outro dado relevante vem de pesquisas em 2022 realizadas pelo Trinity College Dublin, que destacam como o hipocampo região central para a memória não apenas consolida lembranças, mas também promove o descarte ativo de conexões sinápticas. Isso impede que o cérebro fique sobrecarregado por estímulos desnecessários, facilitando a aprendizagem de novos conteúdos. Lembrar tudo seria não apenas impossível, mas prejudicial, pois comprometeria a capacidade de reconhecer padrões e tomar decisões rápidas em contextos incertos.
O senso comum valoriza a boa memória como sinônimo de inteligência, mas a ciência mostra um contraponto intrigante: esquecer é também sinal de inteligência adaptativa. Imagine a dificuldade de se concentrar em uma tarefa se todas as memórias irrelevantes do passado surgissem ao mesmo tempo. Estudos em psicologia cognitiva revelam que a interferência de memórias antigas pode reduzir a eficácia do raciocínio, dificultando a atualização de informações. O esquecimento, nesse contexto, funciona como um filtro ativo, impedindo que o excesso de dados atrapalhe a clareza mental.
Essa função adaptativa do esquecimento pode ser observada no cotidiano de diferentes formas. Situações corriqueiras como não se lembrar de detalhes irrelevantes de uma conversa, esquecer onde se colocou um objeto pouco usado ou não recordar o conteúdo exato de um texto lido semanas atrás são estratégias inconscientes do cérebro para liberar espaço de processamento. O que é mais relevante tende a se consolidar em traços de memória de longo prazo, enquanto informações de baixo impacto são naturalmente descartadas. Esse processo garante que possamos aprender continuamente sem sobrecarregar a mente.
Uma descoberta recente publicada na revista Nature Communications em 2023 reforça essa perspectiva: os pesquisadores identificaram que o esquecimento pode estar associado a mecanismos de neurogênese no hipocampo, ou seja, à formação de novos neurônios que remodelam circuitos de memória. Essa remodelagem não só ajuda a criar novas conexões, mas também a eliminar lembranças antigas que já não são funcionais. Em vez de uma falha, trata-se de um processo dinâmico de renovação que mantém a mente flexível e preparada para mudanças.
Na prática, essa seletividade da memória nos ajuda a lidar com ambientes complexos. A capacidade de esquecer detalhes específicos, mas manter conceitos gerais, permite que façamos previsões mais rápidas sobre novas situações. Por exemplo, ao aprender uma regra de trânsito, não é necessário decorar cada circunstância particular em que se aplicou; basta guardar o princípio geral. Da mesma forma, ao cozinhar, não é preciso lembrar cada vez em que uma receita deu errado, mas sim a regra essencial sobre o tempo de preparo ou a temperatura adequada.
Um ponto curioso é que o esquecimento também protege o bem-estar emocional. Pesquisas da Universidade de Birmingham (2019) demonstraram que memórias de caráter negativo tendem a perder intensidade com o tempo graças a processos de reconsolidação seletiva. Isso significa que o cérebro é capaz de enfraquecer lembranças dolorosas, permitindo que a vida siga em frente sem o peso constante de experiências passadas. Embora nem sempre consiga eliminar completamente recordações traumáticas, esse mecanismo contribui para reduzir o impacto emocional de situações adversas.
Muitas vezes, as pessoas interpretam o esquecimento como sinal de desatenção, preguiça ou até de falha cognitiva precoce. Mas a ciência mostra que se esquecer de detalhes irrelevantes ou de informações pouco usadas não é motivo de preocupação, e sim sinal de que o cérebro está funcionando de forma saudável. A verdadeira preocupação surge apenas quando esquecimentos afetam tarefas fundamentais do dia a dia ou ocorrem em excesso, o que pode sinalizar condições clínicas que merecem atenção médica. Fora desses casos, o esquecimento deve ser visto como um aliado da mente.
Ao contrário do que se imagina, lembrar de tudo seria um fardo. Casos raros de hipertimesia, condição em que indivíduos recordam praticamente todos os dias de suas vidas, mostram as consequências dessa capacidade. Embora impressionante, esse excesso de memória pode ser angustiante, pois dificulta o esquecimento de eventos dolorosos e sobrecarrega o processamento mental. Assim, a sabedoria de não lembrar tudo está no equilíbrio entre retenção e descarte, uma forma de regulação que favorece a clareza e a adaptação.
Aplicar esse conhecimento ao cotidiano pode trazer benefícios concretos. Uma forma de favorecer o equilíbrio saudável da memória é aceitar o esquecimento como parte natural do funcionamento cerebral, evitando autocrítica exagerada diante de lapsos pontuais. Também é possível estimular a memória de longo prazo para aquilo que realmente importa, utilizando estratégias simples como revisão espaçada, escrita de resumos e repetição prática de tarefas. Outra prática útil é reduzir a sobrecarga de informações digitais: ao limitar notificações ou organizar melhor os registros em aplicativos, o cérebro não precisa guardar detalhes redundantes, liberando espaço para o essencial.
Outro recurso prático é reconhecer que o sono é fundamental nesse processo. Pesquisas indicam que durante o sono profundo o cérebro não apenas consolida memórias, mas também descarta conexões consideradas desnecessárias. Valorizar a qualidade do sono, portanto, significa também valorizar o papel ativo do esquecimento. O mesmo vale para atividades físicas regulares, que contribuem para a saúde cerebral e para o equilíbrio entre lembrar e esquecer.
No dia a dia, ao esquecer o motivo de ter entrado em um cômodo ou ao não se recordar de um detalhe irrelevante de uma conversa, é possível olhar para isso com mais gentileza. Esses episódios sinalizam que o cérebro está priorizando, filtrando e ajustando as informações, exatamente como deve fazer para manter o pensamento ágil e adaptativo. O esquecimento, longe de ser inimigo, é um dos maiores aliados da nossa capacidade de viver com leveza, aprender continuamente e enfrentar as incertezas do mundo moderno.
Referências bibliográficas
Richards, B. A., & Frankland, P. W. (2017). The persistence and transience of memory. Neuron, 94(6), 1071–1084.
Ryan, T. J., & Frankland, P. W. (2022). Forgetting as an active process: Evidence from human and animal studies. Nature Reviews Neuroscience, 23(8), 501–515.
Bernhard, E., et al. (2023). Adult hippocampal neurogenesis and memory clearance. Nature Communications, 14, 3412.
Lee, J. L. C., Nader, K., & Schiller, D. (2017). An update on memory reconsolidation updating. Trends in Cognitive Sciences, 21(7), 531–545.


