A memória do corpo: o que o hipocampo tem a ver com o modo como nos sentimos?
- Ana Luiza Faria
- 13 de jun.
- 5 min de leitura
Entre lembranças e sensações, existe uma ponte silenciosa entre o cérebro e o corpo. Essa ponte é viva, plástica e profundamente afetiva. Conheça como o hipocampo e o mapa corporal interno se conectam e como os traumas podem desorganizar essa geografia.

Vivemos em um corpo, mas nem sempre o habitamos. Há momentos em que nos sentimos inteiros, presentes, enraizados no agora; em outros, parece que uma parte de nós se perde no tempo, nas memórias ou em regiões do corpo que deixam de responder com espontaneidade. Essa oscilação entre presença e ausência não é apenas uma questão emocional ela tem raízes neurobiológicas, sensoriais e relacionais. O hipocampo, uma estrutura cerebral associada à memória e à orientação espacial, é peça central nesse enigma. Mas o que ele tem a ver com o nosso corpo? E mais ainda: com o modo como nos sentimos seguros ou ameaçados dentro de nós?
Para entender essa relação, é necessário atravessar as fronteiras entre cérebro, corpo e experiência. O hipocampo, localizado no lobo temporal medial, está entre os principais núcleos responsáveis pela consolidação de memórias episódicas aquelas que se referem a eventos vividos, contextualizados no tempo e no espaço. Ele funciona como um arquivista sensível: recebe experiências, organiza-as com base em sua relevância emocional e depois as distribui para regiões especializadas do cérebro. Em constante diálogo com outras estruturas envolvidas na regulação emocional, o hipocampo atua como um integrador entre percepção, memória e sensação corporal.
Esse vínculo se torna ainda mais evidente quando se considera a existência de um mapa corporal interno uma representação subjetiva e neuropsicológica do corpo, construída ao longo da vida. Desde a gestação, cada toque, ritmo, olhar e gesto contribui para desenhar esse mapa, que não é apenas físico, mas também afetivo. Ele informa sobre a localização e o contorno do corpo, sobre o que é familiar ou estranho, acessível ou retraído, prazeroso ou ameaçador. Trata-se de uma geografia interna em constante atualização.
A formação e a modulação desse mapa corporal estão interligadas à memória especialmente à memória emocional e à memória implícita, que não operam pela via da linguagem, mas se expressam por meio de sensações, posturas, reações automáticas e padrões de movimento. Vivências emocionais marcantes, sobretudo nas fases iniciais do desenvolvimento, deixam impressões duradouras não apenas no sistema nervoso central, mas também na musculatura, na pele e nas vísceras. São essas marcas que o hipocampo tenta organizar ao longo do tempo.
Em situações de estresse crônico ou eventos traumáticos, a atividade do hipocampo pode ser comprometida. Pesquisas apontam que altos níveis de cortisol hormônio liberado em contextos de ameaça afetam sua estrutura e funcionamento. Quando sobrecarregado, o hipocampo perde parte de sua capacidade de organizar as experiências dentro de uma linha temporal coerente. As memórias, em vez de serem processadas e arquivadas, permanecem fragmentadas, muitas vezes acessadas de forma abrupta e descontextualizada, ativando o corpo como se o perigo ainda estivesse presente.
Essa fragmentação tem repercussões diretas sobre o corpo vivido. Regiões corporais podem se tornar insensíveis ou hiper-reativas. Algumas áreas parecem desaparecer do campo de percepção, enquanto outras se mantêm em alerta constante. Essa reorganização silenciosa pode ser sentida como dor difusa, rigidez, bloqueios respiratórios, desconfortos sem causa aparente ou uma sensação persistente de deslocamento de si. Em vez de um corpo unificado, emerge uma corporalidade interrompida, marcada por zonas de silenciamento e sobrecarga.
Com o comprometimento do hipocampo, o sistema de memória perde sua capacidade de situar as experiências no passado. O corpo, então, reage como se aquilo que foi vivido estivesse acontecendo novamente, no presente. Esse tipo de memória — não reconhecida como lembrança, mas sentida como ameaça mantém o organismo em estado de alerta. O mapa corporal torna-se um reflexo dessa condição: desenhado pelo medo, pela tensão e pela evasão, ele informa mais sobre o que deve ser evitado do que sobre o que pode ser vivido.
No entanto, esse cenário não é definitivo. O cérebro possui capacidade de reorganização, conhecida como neuroplasticidade. Quando exposto a experiências relacionais estáveis, ambientes acolhedores e práticas de autorregulação, o sistema nervoso encontra meios de retomar sua integridade. O hipocampo, mesmo afetado, pode se regenerar, criando novas conexões e restabelecendo sua função integradora. Essa possibilidade se abre quando há tempo, repetição e segurança suficiente para que novas experiências possam ser inscritas sem sobrecarga.
A atualização do mapa corporal acontece lentamente, pela via da repetição e do cuidado. Muitas vezes, ela não passa primeiro pela palavra, mas pelo corpo. Sensações que antes eram evitadas começam a ser toleradas. Regiões antes esquecidas retornam à percepção. Movimentos suaves, contato respeitoso e práticas que favorecem a escuta interna se tornam aliados no processo de reconstrução do vínculo com o corpo. Trata-se de um retorno à casa: não como era antes, mas como pode ser agora.
A percepção corporal integrada, com um mapa mais nítido e coerente, permite que a pessoa reconheça os próprios limites, compreenda sinais internos e acesse recursos de autorregulação. A memória, antes fragmentada, pode então ser contextualizada e ressignificada. O corpo deixa de ser um campo de batalha e torna-se novamente um território habitável. Essa transformação, embora sutil e progressiva, tem efeitos profundos na vida cotidiana: melhora a qualidade do sono, diminui a reatividade emocional, favorece relações mais seguras e amplia a sensação de autonomia.
A reconexão entre o hipocampo e o corpo vivido nos convida a perceber que lembrar é também sentir e que muitas vezes, o que o corpo lembra é aquilo que a mente tentou esquecer. Reconhecer essa sabedoria somática não exige pressa, mas presença. À medida que o corpo recupera sua capacidade de registrar o agora com segurança, o hipocampo retoma seu papel como organizador da experiência, permitindo que passado, presente e futuro voltem a se diferenciar. E o que antes era vivido como repetição dolorosa pode se tornar, enfim, narrativa de transformação.
Compreender essa relação entre o hipocampo e o mapa corporal interno é reconhecer que o corpo é mais do que matéria: é memória viva. E que, ao cuidar do corpo como um espaço de escuta e afeto, abrimos caminhos não apenas para a saúde, mas para a possibilidade real de estar em paz com aquilo que somos.
Referências Bibliográficas
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Sobre a autora

Ana Luiza Faria é psicóloga clínica com atuação voltada à escuta profunda, ao cuidado integrativo e ao entrelaçamento entre corpo e psique. Seu trabalho se apoia em abordagens contemporâneas da psicologia e da neurociência, com ênfase na experiência vivida, na regulação emocional e na reconstrução de vínculos internos.
Este espaço nasce como uma extensão do consultório: um lugar de partilha, reflexão e nutrição simbólica, onde o conhecimento se encontra com a sensibilidade. A proposta é oferecer conteúdos que favoreçam o autoconhecimento, a consciência corporal e o cuidado ético com a subjetividade.
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