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É que Narciso acha feio o que não é espelho ...

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 26 de mar.
  • 2 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

É que Narciso acha feio o que não é espelho ...

Em "Sampa", Caetano Veloso captura o desconcerto diante do novo através de um verso revelador: "Narciso acha feio o que não é espelho". A frase sintetiza uma tendência humana profunda a rejeição do que não se assemelha a nós. Mas ela também nos desafia: será possível enxergar o outro sem exigir que ele seja um reflexo nosso? O encontro com a diferença é sempre um confronto. Seja com uma pessoa, uma ideia ou uma cultura distante, o primeiro impulso é buscar familiaridade. Quando não a encontramos, surge o estranhamento uma reação natural, mas que revela mais sobre nós do que sobre o outro. Afinal, a identidade não é estática; ela se constrói justamente no diálogo com aquilo que nos escapa, que nos força a sair do conhecido.


Desde a infância, buscamos referências que validem nossa visão de mundo. O que se assemelha a nós conforta; o que diverge, inquieta. Esse mecanismo, porém, limita nossa capacidade de compreensão. Se só aceitamos o que já reconhecemos, fechamo-nos à riqueza do diverso. Aqui reside um paradoxo: o outro não precisa ser assimilado para ser entendido. Não é necessário que uma ideia se ajuste ao nosso repertório para que tenha valor, nem que uma pessoa se torne "como nós" para merecer respeito. A verdadeira abertura exige que abandonemos a necessidade de domínio que olhemos sem a pretensão de decifrar, categorizar ou reduzir.


Se Narciso só vê beleza no que reflete sua imagem, ele condena-se à solidão do autorreconhecimento. A identidade, no entanto, não se fortalece na repetição, mas na transformação. Cada encontro com o diferente seja ele harmonioso ou conflituoso — é uma chance de expandir quem somos. O estranhamento, portanto, não deveria ser um obstáculo, mas um convite. Quando nos deparamos com algo que não compreendemos imediatamente, temos duas escolhas: rejeitá-lo por não caber em nossos moldes ou permitir que ele nos questione. A segunda opção é mais difícil, mas também mais fértil.


Aceitar o outro em sua diferença exige desprendimento. Significa abrir mão da segurança do previsível e encarar o desconhecido sem a ânsia de controlá-lo. Esse movimento é desestabilizador mas é também o que nos permite crescer. Caetano, ao retratar São Paulo como um labirinto de contrastes, celebra justamente isso: a cidade que não se deixa decifrar, que resiste à simplificação. Da mesma forma, o outro (seja uma pessoa, uma cultura ou uma perspectiva) não existe para nos confirmar, mas para nos desafiar.


Diante do que não é espelho, como reagimos? Insistimos em buscar nosso próprio reflexo, ou estamos dispostos a enxergar o mundo e a nós mesmos com novos olhos? A resposta define não apenas nossas relações, mas a profundidade da nossa existência.

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