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A banalização dos conceitos psicanalíticos

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 10 de set.
  • 2 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista em fundo de papel amassado. Uma figura humana vintage aparece de costas, com a boca costurada por fios dourados e pretos, simbolizando o silêncio ético da psicanálise. Balões de fala se desfazem em pássaros escuros, representando discursos que distorcem conceitos clínicos em slogans vazios. Flores secas e linhas orgânicas atravessam a cena, evocando fragilidade e passagem do tempo, em contraste com a banalização dos conceitos psicanalíticos.
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Nos últimos anos, tornou-se frequente ver conceitos psicanalíticos sendo usados como munição em debates políticos. Líderes públicos são classificados como “paranoicos”, “psicopatas”, “perversos” diagnósticos lançados em manchetes, artigos de opinião e redes sociais. O problema é que, ao fazer isso, perde-se de vista aquilo que a psicanálise é em sua essência: uma prática clínica, construída na intimidade da escuta, e não um dispositivo para justificar posições partidárias, seja de um lado ou de outro.


Freud foi categórico em sua crítica à chamada psicanálise selvagem: a apropriação apressada e irresponsável de seus conceitos para além do contexto clínico. Diagnosticar à distância, sem transferência, sem escuta, sem relação analítica, é trair a própria base da psicanálise. Mais do que um erro técnico, é um risco ético porque transforma uma ferramenta de compreensão do inconsciente em arma de combate ideológico.


Quando um analista, escritor ou intelectual usa a psicanálise para rotular figuras públicas conforme sua posição política, o que está acontecendo não é avanço teórico, mas confusão de estações. Em vez de contribuir para o debate, deslegitima-se a própria psicanálise, reduzindo-a a um panfleto sofisticado. Se a crítica é política, que seja feita no campo da política, com argumentos históricos, jurídicos ou sociais. Mas convocar Freud como chancela para juízos partidários é desonesto com a tradição psicanalítica e perigoso para sua credibilidade.


A psicanálise não nasceu para defender governos, partidos ou ideologias. Ela nasceu para abrir espaço ao sujeito, às contradições humanas, ao inconsciente que escapa dos discursos oficiais. Seu valor está justamente na capacidade de não se deixar capturar pelo imediatismo das narrativas coletivas. Transformar conceitos clínicos em rótulos políticos é esvaziar essa potência e banalizar seu alcance.


Não se trata, portanto, de discutir se determinado político é “louco”, “perverso” ou “normal”. Essa é uma falsa questão. O que importa é entender como discursos de massa operam, como lideranças mobilizam afetos sociais, como a violência simbólica e real se expressa na cultura. Esse é o terreno legítimo da psicanálise quando se volta para o coletivo: não o diagnóstico de indivíduos, mas a análise das formações sociais e dos fenômenos inconscientes que atravessam o laço social.


Ao misturar psicanálise com disputa partidária, perde-se duplamente: o debate político se empobrece, porque recorre a caricaturas clínicas em vez de argumentos sólidos; e a psicanálise se degrada, porque é instrumentalizada para fins que lhe são alheios. O resultado é confusão, polarização e desinformação.


É hora de retomar a seriedade da discussão. A psicanálise deve permanecer no lugar que lhe é próprio: o da escuta, do rigor conceitual, da ética do sujeito. Ela pode, sim, dialogar com a política mas não como diagnóstico à distância ou como justificativa de posicionamentos, e sim como reflexão crítica sobre os modos de gozo, de poder e de sofrimento que atravessam a vida coletiva.


Reduzir Freud a rótulos políticos é trair o próprio espírito de sua obra. Respeitar a psicanálise significa preservá-la dessa apropriação indevida e reconhecer que, em tempos de barulho ideológico, seu maior valor continua sendo o mesmo: a coragem de escutar o que não cabe no discurso oficial de nenhum partido.

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