O impacto dos traumas intergeracionais no comportamento
- Ana Luiza Faria
- 21 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Por Ana Luiza Faria
Os traumas intergeracionais são fenômenos que afetam famílias, comunidades e até sociedades inteiras. Eles dizem respeito à transmissão de experiências traumáticas de uma geração para outra, influenciando comportamentos, emoções e padrões de vida, mesmo que os descendentes não tenham vivenciado diretamente os eventos traumáticos. Mas como isso ocorre? Quais são os mecanismos que perpetuam esses traumas, e como eles moldam o comportamento de gerações futuras? Vamos explorar esse tema, abordando tanto suas bases científicas quanto suas consequências práticas.
Traumas intergeracionais, também chamados de traumas transgeracionais, referem-se ao impacto psicológico que eventos traumáticos vividos por uma geração podem ter nas gerações subsequentes. Um exemplo marcante disso são os descendentes de sobreviventes do Holocausto, que muitas vezes exibem sintomas de ansiedade, medo e comportamentos de sobrevivência que se assemelham ao sofrimento de seus antecessores, mesmo sem terem vivido diretamente os horrores do genocídio. O trauma não precisa estar restrito a grandes catástrofes históricas. Ele pode surgir em nível familiar, como em casos de abuso, violência doméstica ou perda de membros queridos, que acabam moldando a maneira como os descendentes percebem o mundo, lidam com relacionamentos e enfrentam adversidades.
A transmissão intergeracional de traumas pode ocorrer por várias vias, que incluem fatores psicológicos, sociais e biológicos. Uma dessas vias é a epigenética, um campo que estuda como fatores ambientais, incluindo o estresse e o trauma, podem alterar a expressão genética sem modificar a sequência de DNA. Essas alterações podem ser transmitidas para os descendentes, predispondo-os a problemas emocionais e comportamentais. Por exemplo, estudos com ratos demonstraram que mães que sofreram altos níveis de estresse durante a gestação produziram filhotes mais propensos à ansiedade e comportamentos defensivos. Isso sugere que o ambiente traumático pode deixar "marcas" em certos genes que são herdados pelas próximas gerações. Em humanos, pesquisas sobre sobreviventes de guerras e traumas graves mostram padrões semelhantes: filhos de pessoas que passaram por eventos estressantes significativos frequentemente demonstram maior sensibilidade ao estresse e dificuldades emocionais.
Além disso, há a transmissão através do comportamento familiar. Crianças que crescem em lares onde o trauma não é discutido abertamente, mas se manifesta em comportamentos ansiosos, explosões emocionais ou uma incapacidade de lidar com situações difíceis, acabam aprendendo a replicar esses padrões. Elas podem absorver, de maneira inconsciente, o medo e a insegurança que seus pais ou avós carregam, perpetuando ciclos de comportamento que remontam a gerações anteriores.
Os efeitos dos traumas intergeracionais são visíveis em várias esferas do comportamento humano. O medo, a ansiedade e a desconfiança no mundo são algumas das manifestações mais comuns. As gerações subsequentes podem desenvolver padrões de comportamento voltados para a sobrevivência, como hiper vigilância, dificuldade de confiar em outras pessoas e tendência ao isolamento emocional. Por exemplo, em comunidades indígenas e afrodescendentes que enfrentaram séculos de colonização, escravidão e genocídio cultural, há uma prevalência maior de problemas de saúde mental, como depressão, abuso de substâncias e comportamentos autodestrutivos. Esses traumas históricos geraram cicatrizes profundas que continuam a moldar o comportamento das gerações mais jovens, muitas vezes sem que haja uma consciência clara de sua origem.
O impacto também pode se manifestar em dificuldades nas relações interpessoais. Filhos de pais que passaram por traumas significativos podem encontrar dificuldades para estabelecer relações saudáveis. Eles podem ter problemas com intimidade emocional, dificuldades em expressar sentimentos ou, inversamente, podem ser excessivamente protetores e controladores, como forma de tentar proteger seus entes queridos de qualquer potencial perigo.
Um estudo conduzido com descendentes de sobreviventes do genocídio armênio revelou que, mesmo gerações depois, as famílias carregam traços profundos de luto e trauma. Essas famílias, em muitos casos, continuavam a discutir o genocídio como um evento presente em suas vidas, mantendo o trauma "vivo" nas narrativas familiares, o que influenciava o modo como lidavam com eventos adversos e mantinham uma visão de mundo marcada por uma sensação de ameaça constante. Outro exemplo é o estudo com descendentes de africanos que viveram sob escravidão. Os descendentes de escravizados nos EUA, por exemplo, ainda apresentam taxas desproporcionais de doenças mentais, pobreza e violência, muitas das quais estão ligadas às consequências emocionais e sociais de séculos de opressão. A transmissão do trauma ocorre não só pela narrativa e pelo aprendizado comportamental, mas também pelos efeitos da exclusão social e econômica, perpetuados ao longo de gerações.
Entender os traumas intergeracionais é essencial para compreender muitos dos comportamentos e dinâmicas familiares que vemos hoje. Ainda que as pessoas afetadas por esses traumas não tenham vivido diretamente os eventos traumáticos, suas vidas são profundamente influenciadas por eles. A conscientização sobre esse fenômeno é o primeiro passo para quebrar o ciclo de transmissão e iniciar o processo de cura. Ao explorar como os traumas intergeracionais moldam o comportamento, podemos entender melhor por que alguns padrões de comportamento se repetem em famílias ou comunidades. A psicologia contemporânea, ao lado de estudos em epigenética e desenvolvimento humano, continua a investigar maneiras de amenizar o impacto desses traumas, ajudando as gerações futuras a viver de forma mais saudável e resiliente.
Fontes e Referências:
Yehuda, R., & Lehrner, A. (2018). Intergenerational transmission of trauma effects: putative role of epigenetic mechanisms. World Psychiatry, 17(3), 243-257.
Kirmayer, L. J., Gone, J. P., & Moses, J. (2014). Rethinking historical trauma. Transcultural Psychiatry, 51(3), 299-319.
Schwab, G. (2010). Haunting legacies: Violent histories and transgenerational trauma. Columbia University Press.