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#02 Crônica | A vida que não cabe em um feed perfeito

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 23 de ago.
  • 2 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

A vida que não cabe em um feed perfeito
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No café da manhã de domingo, entre um gole de café morno e uma mordida em um pão que já perdeu a crocância, o dedo desliza no celular como quem procura companhia. E lá está: o sorriso branco da influenciadora, a viagem paradisíaca do colega de faculdade, o prato perfeitamente equilibrado do conhecido que, na vida real, nunca soube fritar um ovo sem estourar a gema.


A mesa bagunçada com farelos de pão e a toalha manchada de café ganham um contraste cruel diante da tela. Quase dá vontade de ajeitar o cabelo só para ver se a câmera frontal não entrega demais a cena real aquela que ninguém posta. É curioso perceber como a luz do sol parece mais bonita na casa dos outros, mesmo sendo o mesmo sol atravessando a mesma janela.


O deslizar do feed é quase hipnótico: corpos que parecem sempre em ângulo certo, casas sem poeira, relacionamentos que cabem em legendas românticas e viagens que se sucedem como capítulos de um romance sem pausa. Por aqui, o capítulo é outro: a fila do supermercado, a roupa esquecida no varal, o boleto que não tira férias.


A mente, como boa comparadora compulsiva, não perde tempo. “E eu?”, pergunta em silêncio. “Por que não?” É nesse espaço invisível que a ansiedade se instala, como aquela visita inconveniente que chega sem avisar e se recusa a ir embora. De repente, a vida que parecia suficiente ontem já não parece caber na medida certa hoje. O filtro do Instagram não é só para as fotos: ele acaba filtrando também a forma como nos olhamos.


E no entanto, basta lembrar da amiga que confessou, num café rápido, que o sorriso postado horas antes escondia uma briga feia em casa. Ou do colega que publicou a foto da praia, mas tirou o celular do carregador no quarto abafado de um hostel que cheirava a mofo. A edição, no fundo, não é fraude, mas um jeito de contar uma história parcial, e o problema é quando acreditamos nela como se fosse um retrato fiel.


O pão amanhecido, nesse instante, revela seu papel de filósofo involuntário: é seco, irregular, mas continua pão. Sustenta. Talvez a vida seja isso mais miolo do que casca, mais bastidor do que espetáculo. E, ironicamente, quando a câmera vira para dentro, é onde descobrimos que quase ninguém vive no palco iluminado que publica.


De repente, o café esfria demais e o dedo pausa no scroll infinito. A epifania surge pequena, quase tímida: se a vida dos outros cabe tão perfeitamente em quadradinhos editados, talvez seja justamente porque não cabe na realidade inteira. E aí, a bagunça da mesa, o cabelo desalinhado e o pão sem brilho ganham uma estranha beleza.


Porque no fim das contas, enquanto a grama do vizinho floresce no filtro, o que sustenta mesmo é a raiz invisível que ninguém posta.

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