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#04 Crônica | As tardes na gelateria com a minha mãe

  • Foto do escritor: Ana Luiza Faria
    Ana Luiza Faria
  • 14 de set.
  • 2 min de leitura

Por Ana Luiza Faria

Colagem surrealista delicada representando as tardes na gelateria com a minha mãe, com café expresso, Stracciatella e flores secas
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Há um certo luxo escondido nos instantes mais simples. Sempre penso nisso quando entro na pequena gelateria com a minha mãe. Não é um luxo que se mede em cifras, mas na delicadeza de poder viver a cena por inteiro. É um luxo que se traduz em tempo disponível, em presença plena, em ter espaço para respirar sem correria.


O ritual já começa antes de escolhermos o sorvete: pedimos um café expresso curto, desses que cabem na palma da mão mas sustentam conversas inteiras. O primeiro gole abre o corpo, aquece a garganta e prepara o coração para escutar. É nesse instante que as palavras começam a se derramar, sem roteiro. Falamos da vida, das escolhas que se impõem e das que conquistamos, daquilo que pesa e também do que alivia. Em alguns dias, o silêncio é quem nos acompanha, mas é um silêncio cheio de significado, como se não precisássemos de mais nada além daquela partilha invisível.


Depois vem a decisão que, na verdade, nunca muda: Stracciatella. É curioso como, diante de tantas opções, sempre escolhemos o mesmo sabor. Talvez porque ele represente continuidade, um ponto fixo no meio das incertezas. A cada colherada, lembro-me de como é precioso poder escolher não apenas o sorvete, mas o modo como conduzo a vida. Ter espaço para organizar meu trabalho de forma que caiba nessas tardes é uma conquista silenciosa, um pedaço de liberdade que não tomo como garantido. É privilégio, e sei disso.


Esses instantes, que poderiam parecer banais, carregam uma densidade rara. É como se a vida se revelasse em sua forma mais pura quando sentamos naquela mesa, sob a luz suave do sol que atravessa as folhas da árvore. O tempo se suspende. Não há pressa, não há urgência. Só o prazer de estar. Ali descubro que ter domínio do simples é muito mais do que um ideal: é prática cotidiana, é poder encontrar sentido no que, para muitos, passa despercebido.


As conversas, às vezes, mergulham fundo. Tocamos naquilo que não tem resposta fácil: o envelhecimento, os medos, a finitude. Mas também falamos de lembranças, rimos de histórias antigas, resgatamos frases de pessoas que já não estão. Tudo se mistura, e talvez seja isso que dá sentido ao encontro: o reconhecimento de que a vida cabe inteira em uma tarde na gelateria.


E quando volto para casa, sempre me pego pensando que não há tesouro maior do que esse: poder dividir um sorvete de Stracciatella com minha mãe, acompanhar cada gole de café com palavras e silêncios, sentir que pertenço a esse momento. É disso que é feita a vida. Não das grandes conquistas, mas desses recortes sutis que, quando reconhecidos, se tornam eternos.


Agradeço todos os dias por poder desfrutar disso: as tardes de gelateria com minha mãe, o gosto doce e fresco da Stracciatella, o café que antecede as escolhas, as trocas que se aprofundam sem esforço. A vida, penso, é generosa quando aprendemos a enxergar que o simples é, na verdade, o que temos de mais rico.


As tardes na gelateria com a minha mãe

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