#01Crônica | O segredo das amizades que atravessam o tempo
- Ana Luiza Faria
- 13 de ago.
- 3 min de leitura
Por Ana Luiza Faria

Era sábado de manhã e eu estava na padaria da esquina, esperando o café ficar pronto, quando vi duas senhoras dividindo um pão na chapa. Não era qualquer divisão: elas partiam o pão no meio com uma precisão de quem já fez aquilo centenas de vezes. Uma empurrava a metade para a outra, enquanto falavam ao mesmo tempo, como se a conversa tivesse começado nos anos 80 e nunca mais tivesse sido interrompida.
- Lembra do dia que você esqueceu de pegar o ônibus e teve que ir a pé até o centro? perguntou a do casaco vermelho.
- Esquecer? Eu perdi de propósito!
respondeu a outra, rindo com um gole de café.
Fiquei ali, fingindo mexer no celular, mas na verdade observando o jeito como riam sem precisar se explicar. Era um riso cúmplice, daqueles que não dependem de piada boa, só de memória compartilhada.
Enquanto esperava minha vez, me peguei pensando nas minhas próprias amizades. Algumas resistiram a mudanças de cidade, a silêncios longos, a mensagens respondidas dias depois. Outras… bem, outras se perderam por motivos que até hoje não sei explicar. Às vezes foi um conflito bobo que cresceu como planta daninha. Outras, simplesmente, o tempo fez a fila andar e a gente deixou.
O café chegou, mas eu continuei lá, olhando pela janela. Pensei na vez em que encontrei a Mel, depois de três anos sem nos falarmos. Marcamos no mesmo barzinho de sempre, e foi como se a conversa tivesse ficado pausada num canto da mesa, esperando a gente voltar para apertar o "play". Ela pediu o mesmo drink, eu fiz a mesma piada sobre o garçom que sempre parecia estar de ressaca. A vida tinha nos levado por caminhos completamente diferentes, mas ainda havia um fio invisível puxando a gente de volta.
E aí me lembrei da Júlia. Amiga de adolescência, confidente, parceira de planos mirabolantes. Um dia, sem aviso, começamos a trocar menos mensagens. Depois, passamos a responder com um simples “rs”. Até que não respondemos mais. Não houve briga, não houve adeus. Só um silêncio que foi ficando confortável demais.
A senhora do casaco vermelho levantou para pagar a conta, e a amiga fez questão de colocar uma nota em cima da mesa. Elas discutiram baixinho sobre quem ia pagar dessa vez, rindo como quem já repetiu essa cena a vida inteira. E foi aí que me ocorreu: talvez algumas amizades sobrevivam porque têm rituais. Pequenos gestos que se repetem e que, no fundo, são uma forma de dizer “eu ainda estou aqui”. Pode ser dividir um pão na chapa, mandar um meme idiota às três da manhã, ou até brigar para ver quem paga a conta.
O problema é que, quando o ritual se quebra, a amizade começa a se desmanchar pelas bordas. Não porque o afeto acabou, mas porque a costura do dia a dia se soltou. E costura solta, a gente sabe, precisa de cuidado para não virar buraco.
Peguei meu café, paguei e saí andando. O ar tinha cheiro de pão quente e de alguma coisa que eu não sabia nomear. No caminho de volta, mandei uma mensagem para a Mel, sem motivo. Depois, quase por impulso, escrevi para a Júlia: “Ei, você lembra daquela nossa música?”. Não sabia se ela ia responder. Mas, no fundo, não importava. Talvez amizades que resistem ao tempo sejam essas: as que a gente, de vez em quando, decide não deixar escapar.
E, por um instante, achei que tivesse entendido tudo. Até que meu celular apitou e a Júlia respondeu: “Claro que lembro. E ainda sei a coreografia”.
Foi aí que percebi que, às vezes, a gente só precisa apertar o “play” de novo.


